quarta-feira, 23 de novembro de 2011

LAURA



***


MARÇO, QUINTA-FEIRA

Apesar de tudo é fácil o encontrar. Um, no máximo dois lugares, e lá está o André. Vai ver faz de propósito. As suas, transgressões, suas... foram, são sempre bem amparadas.
Ana foi para casa de uma amiga, histérica. Engraçado os chiliques dela, considerando quantas vezes eu a encontrei caída também.
Não entendo como não foi você que largou dela, pelo amor de Deus, a mulher conhece no máximo vinte palavras e usa cinco. Vai saber se dessa vez é para valer...
Você conseguiu irmão. Será que sabe? Tem uma folha inteira no jornal falando do seu livro. Desde segunda que não param de ligar lá em casa. É sempre “esplêndido”, deve ser o adjetivo da moda. Queria ver sua cara ouvindo, detestaria. Mas, é bom mesmo assim.
E o que me disse é estúpido. Para variar, distorceu tudo, não tinha nada a ver comfalso moralismoou, como é que era? Eu o querer submeter a umanormalidade hipócrita, burguesa. Quanta eloquência... agora, saúde não é caretice e nem tranquilidade é sinônimo de castração! Inclusive tem me faltado bastante. Quatro horas da manhã e eu num semáforo no centro de São Paulo, vai ser um dia ótimo...
O pior é que se você não estivesse semiconsciente, babando no meu banco, ia me revelar a beleza disso, “a cidade travestida em madrugada, seu ar de recém-liberta”, na verdade falaria algo melhor...
Foi sempre assim. Você sempre foi poeta. E eu correndo para tentar ver o mundo que você via. A quantos espaços fantásticos não nos levou? Fez até o paraíso da nossa casa habitável.
Depois nossos lugares viraram palavras e livros, som. E deixou de ser bonitinho o menino com a cabeça na lua. Ninguém mais sabia onde encontrá-lo e gritavam. Demorei para notar que tinha virado o fosso do seu castelo, todo tempo à sua volta, protegendo seus domínios. Até hoje você não percebeu.
E se como me acusa, vivo em suas conquistas, gozo nas suas aventuras, também é com seus desesperos que me afundo! Porque no fim, um é o outro e é tudo a mesma coisa, inseparável o que o destrói e o que o anima. É tanto... você transborda, afoga tudo ao redor. Foi sempre assim.
-- Acorda André. Chegamos.
Se fosse você na minha pele agora, já tinha batido a cabeça no volante, e berraria tudo isso para mim. Mas eu não tenho essa desmedida, meus limites são estreitos, bem definidos.
 -- Levanta, merda André, vai ficar caído na calçada?
Devia lhe deixar aí, com a cara na sarjeta, aproveitando toda sua intensidade.
Melhor agora, bebendo a limpeza de alguma esquina, essa água suja entrando na sua boca, pelo seu nariz, sem reagir.
É até poético, lhe assistir a se afogar, no meio da rua.
--Laura? Me ajuda aqui.
***

MARÇO, SEXTA-FEIRA

-- Ela não vai voltar, vai?
-- Como é que eu vou saber
-- Eu queria ter conseguido.
-- Conseguido o quê?
-- Fazer funcionar...
-- Ah, olha aqui André, a Ana não era para você, nunca foi. Não sei o que aconteceu, mas ela de toda porra louca de repente quis encenar comercial de margarina.
-- Laura...
-- É verdade, não que eu gostasse dela doida, mas tinha que ir para o outro extremo, oito ou oitenta?
-- Ela só queria um pouco mais de tranquilidade, não é isso que você vive me receitando também?
-- Qual é, André, ela queria ter filho, brincar de casinha. Mandar você largar mão de tudo e arrumar um emprego decente? Não está certo, ninguém tem o direito de pedir uma coisa dessas, eu não perdoo.
-- Não era só isso, é todo resto. Você gosta de ficar me caçando de madrugada?
-- Come alguma coisa, é ressaca moral, à tarde melhora.
-- Não estou brincando Laura, se eu pudesse eu não era assim se pudesse eu rasgava essa pele e pegava outra!
-- Que merda é essa André? Prefiro te ver esperneando contra a “moral burguesa”.
-- Talvez você estivesse certa sobre isso, deixar de ser esse estorvo fazer qualquer coisa útil. Nem eu aguento mais as minhas crises, minhas angústias é sempre igual e de novo e igual e de novo.
-- Puta que pariu, não foi o que eu disse. Vai concordar com essas besteiras agora? Queria ser como, viver como? Do mesmo jeitinho de todo mundo, medíocre. Você não se dá conta? As coisas que faz, que escreve... Não leu o jornal não?
-- Foda-se essa merda! Olha para mim Laura, olha o que sobrou! Não aguento, não quero mais pensar. Você acha lindo, mas sabe como é, não pertencer a espaço nenhum? Eu não quero mais ter que inventar um lugar, quero estar. Não consigo.
--
-- Eu quero tanto que quase me mato. Está ficando pior, depois dessa merda de concurso, dessas porras desses jornais, ninguém entendeu nada. E falam e falam, era melhor que me xingassem!
-- Danem-se eles André.
-- Danem-se nada! Sento e estão lá, bafejando na minha nuca! Para mim não escrevo mais. Tudo fica uma bosta e tem sempre uma multidão esperando.
-- Falei com a mãe.
--
-- Quando?
-- Acho que vou passar uns tempos lá.
-- Como assim?
-- Sair do meio de tudo isso, aqui não dá mais... nem vejo já saí, bebi me enfiei em toda merda que apareceu. Você não tem noção das coisas que eu ando fazendo. 
-- Incrível, como tudo é sempre sobre você. Quis, viemos. Agora quer voltar?
-- Vamos Laura, você nem gosta mesmo daqui; e eu preciso da sua retaguarda.
-- Não é assim tão simples.
-- Por que não? Pode continuar fazendo as traduções lá! Você já tem trabalho arranjado para o resto da vida! Eu sei que sente falta...
-- Sabe mesmo? Foi a Ana que te mandou fazer isso.
-- Laura, se eu continuar assim, na próxima vez você vai rebocar o meu cadáver.

***
JULHO, DOMINGO
O cheiro da casa. Sempre o mesmo.
Aquela luz torta ainda entrava, culpa da porta quadriculada, com vidros crespos; talvez.
As roupas sujas deixou nos tacos soltos aos pés do sofá, detestava hospitais. Foi seguindo o corrimão, que viu diminuir com o passar do tempo, até a sala de jantar.
A casa toda diminuíra, mas os olhos ainda eram imensos. Um bisavô fora pintor, todo cômodo nobre era coberto com quadros. Suas figuras eram altas, fortes, um olhar sempre bravio, mesmo o da mulher chorando do rochedo; todos feitos às ondas revoltas, punha sempre mar em suas molduras.
O terreno era grande, sabe-se lá porque construiu a casa bem na parte do barranco. Ficou daquele jeito, cheia de desníveis, de recôncavos, esquinas... Era também arquiteto, o avô de minha mãe, chegou a ser consagrado doutor por “honoris causa” na capital. Além de compositor, escultor, músico... O “Maestro”, como o chamavam, fez muitas coisas. Na cidade, a família ainda gozava dos prestígios que deu ao seu nome.
Não. Só minha mãe fingia que era. Os descendentes do grande Maestro já o tinham suplantado na memória do povo, seus feitos de, bem menos nobres, eram bem mais comentáveis.
A mesa de madeira pesada, dez lugares, uma passadeira de trico, um vaso de flores de plástico. A televisão, beirando o século passado, o tapete liso de tão puído.
É tarde, as mesmas sombras nos corredores longos, o rangido dos cupins nas escadas. Criança, nunca conseguiu atravessá-los sem desatar a correr. Agora, só controla a ânsia: como todo o resto, os fantasmas permanecem. Ainda sobe sem olhar para baixo e abre depressa o quarto do irmão.
Até deixar a casa dormiu lá, depois que a mãe desistiu de prendê-la no próprio quarto. Ali estavam sua cama, o guarda-roupa, que fora da avó, todos seus resquícios até os dezenove anos e os restos do André. Deitou virada para a luz que encontrava da janela.
Não passou muito, acordou com grito seu, virou para a cama vazia do irmão.
O vento quente era o melhor que tinha naquela casa, quando entrava de um susto pelas cortinas... Laura abriu os olhos, encarou o teto da infância, teve nojo do teto da infância.
Quatro meses. Por ela nunca teriam voltado.
Claro que não podia ser bom para ninguém, muito menos para ele...
-- Laura, você não vai levantar? Não sei que mania é essa de trancar a porta, só tem nós duas aqui.
 Odiosa. Minha mãe.
Virou por mais uma hora na cama, quando saiu a panela de pressão fazia alarde, a sala fedia a carne. Levou o café para o quintal, quase baldio, roseiras crescendo no chão batido, enorme. Quatro meses. Ele a enganou. Tudo uma armadilha, a convenceu a voltar dizendo que queria melhorar, nada disso. sabia que ia fazer? Ela não conseguia se decidir, ele era muito impulsivo. 
     -- Você vai que horas para o hospital? O médico quer falar com a gente antes de dar alta.
     -- Eu sei mãe.
     -- Então?
     -- O quê?
     -- Que horas você vai? Não vejo a hora dele sair daquele lugar.
     -- Não sei.
    -- Qual seu problema Laura? Seu irmão precisa de ajuda! Essa é boa, justo você que não desgrudou dele a vida inteira, vai lhe virar as costas agora?
     -- Quem virou as costas para quem?
     -- Incrível, como você é egoísta, seu irmão está doente, isso não é sobre você.
      -- Não, é tudo sobre aquela mulher, não foi por ela que ele tentou se matar?
      -- Cala boca Laura!
      --
     -- Ele já explicou tudo, foi um acidente, um excesso. O médico só quer falar com você antes de liberá-lo.
     -- Às vezes eu acho que você não viu a mesma coisa que eu. Vai trazer ele para cá e fazer o quê, me por para vigiá-lo o dia inteiro? Porque ele vai fazer de novo.
    -- Santo Deus, como você é exagerada, desde sempre! Foi um acidente, porque é tão difícil de entender? Ande você vai?
     -- Me trocar, você não está com pressa?
   O estrondo, o carro pegando fogo, ele não tinha esse direito, não podia ter feito. O médico era meio bonachão, minha mãe rodando pelo quarto pronta para fazer as malas, com aquela vozinha aguda que ela sempre usava com o André. 
     Ele deitado concordava, sorriso perfeito, sustentava a história do acidente, perfeito só o olhar vidrado denunciava.         
    -- Já falei doutor, o que ele precisa é ir para a casa, ser mimado um pouco. Não é Laura?  
    -- Então Laura? O que você acha posso dar alta para o arruaceiro?                                          
     -- Aí meu filho, você sempre se metendo em confusão... 

Todos ali olhando para ela, a mãe imperiosa, o médico pastelão, o André suplicante. E 
ela toda raiva. Uma semana e tremia ainda da patinada do pneu, do estrondo na 
árvore, do sangue todo, do metal retorcido, do irmão que não acordava. Raiva. Fechou 
o dedo no curativo, queimou a mão para tirá-lo do carro pegando fogo.                               
-- Ele está ótimo.
 
***

AGOSTO, QUARTA-FEIRA


sexta-feira, 23 de setembro de 2011

PROFUSÃO DE NADAS OU EGOCENTRICES



Pois sabe que sempre detestei a primeira pessoa? Estes eus transbordantes, de unhas em frangalhos, batendo no teclado sujo como se cada respiração dependesse de uma palavra martelada ou garranchada no papel. Uma boa digestão evitaria uma infinidade de textos, contos, poemas; no mínimo, o fedor seria menor e, quem sabe? Não precisaríamos admirar essas poças grossas, com seus pedacinhos de arroz, o frango do almoço, boiando num ardido de vinho vagabundo. Não, não daria falta desses textos tão em voga, desses “diários” escancarados, pobres coraçõezinhos, corpos, mentes destroçados, envoltos em fumaça, cheirando a cinzeiro e dias de banho não tomados. Justo eu que bocejava ao desfile de dores, às vísceras, cuidadosamente selecionadas, expostas em galerias, bem postas e emolduradas, que sorria com desdém diante desses canteiros de narcisos... Agora me remexo na cama, em noite de palavras flutuantes, de frases que se desmontam sem deixar rastro; levanto, acostumo os olhos à luz, pego a caneta e tudo se cala. Continuo mesmo assim, quase em tributo ao sono perdido, como eles de olhos fundos, sacrificando o dia seguinte a pretexto de imagens mancas. Qualquer coisa falta, aos meus começos segue um mar de vazios, salgados em semelhança, remexo também nas entranhas, impossível construir, só fragmentos egocêntricos me sobram do espírito. R. disse: por vezes o amor ao outro se confunde com o ódio a si mesmo, R. chora há vinte anos a mesma lágrima. Desespero é abrir a boca para grito nenhum, eles se desgastam com o tempo, perdem volume com a repetição. Desespero é o silêncio de quem não suporta mais ouvir as próprias, sempre mesmas, lamúrias. Como eu tinha raiva desses artistas, escritores autoproclamados a bradar que escrevem para não sufocar, a se esparramar em pieguices, esquecendo que se morre é de fome, de doença, de descaso ou de maldade. Ninguém que fala tanto de si mesmo e, consigo mesmo, merece companhia e para ela era tão bom me rever que jamais me procuraria. Quem sabe agora não imita a mãe? – que não escrevia mas fazia seu drama – E corre para longe de mentirinha, faz de conta que foge, chora a decisão última, inevitável, logo antes de fazer a volta, abrir o portão, guardar o carro, trancar a porta e deitar no lado vazio da cama? Bonito. Queria dissolver isso em uma estória, em uma personagem, fazer presente aquela estradinha de curvas, a atmosfera sagrada do carro, seus ares negros de profecia, enquanto a cidade ficava para trás – as casas, a praça, as luzes, a casa – e o céu resplandecia na serra escura, queria fazer presente o que me passava então, provando a solidão pela primeira vez na solidão de outra e a ela, tão nova, tentando resistir aquela, lágrimas de mãe, maldição. Mas não, me escavo toda e nada brota, no máximo esse vômito emocionado. M. descontraída no café: Se fosse comigo me mataria. O motivo era pouco, quase uma banalidade, a certeza? Cortante. Desejo-lhe outra morte, tomo a xícara, ainda frio, mais que todas uma herança é maldita. Escolher a própria herança, ser fiel traindo: Derrida. M. ignorava a primeira, sabia bem da segunda. Impossível fazer o marido entender, mas nada supera o que não pode ser explicado, é quando falha a língua, quando a palavra é pouca, que se vive o precioso. Batismo é sentença de exílio, todo nome usurpa... E eu que detestava essas besteiras me encho toda com elas, invertia o gênero, me escondia numa terceira pessoa, me dissolvia em outros, transmutava... agora só faíscas estéreis:
  • Certeza: não se dá um passo, ação ou palavra, sem causar um mal a alguém;
  • Às vezes, nossa presença deixa de ser suportável justamente quando chegamos mais perto do outro, descobrimos seus segredos;
  • Pode se enjaular muito tempo na mesma dor, uma vida, sem conseguir resolvê-la nem abandoná-la;
  • Alguns nascem com pouco, respiração fina, pulso fraco, tem de lançar mão de mil artimanhas para o peito seguir batendo e, principalmente, fingir esquecer o quanto isso é inútil.

    Em mim o sopro foi fraco, faltou hálito, nos primeiros ainda se sentia mas, minguante, minguando quase à lassidão. Escrever costumava ser uma lufada de vento numa tarde modorrenta. Pois acredita que eu sempre detestei a primeira pessoa? Estes coitados insones, criaturas tateantes de olhos virados para dentro, rodando sem parar no próprio eixo, martelando ou garranchando sequências de cafonices – e eus, e sentir e amar e sofrer e morrer – num papel sem sorte. E eu que levantei com esperança em uma brecha no espaço, no tempo, uma brecha neste eu que sem dizer nada não se cala, volto para cama sem olhar o relógio, e com a certeza que sabotei mais um dia por nada.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

SUMIDOURO

   Ninguém mais ouvia. O piano fechou.
   Mercedes confundiu o vazio com o silêncio, olhou o marido e logo a televisão estava ligada.
   Nem perceberam o soluço que soprou a casa, sequer notaram as fotos esmaecendo.
   No quarto de cima, carunchos invadiram os móveis, milhares.
   No espelho ainda uma imagem preservada.
  Olhava os livros baterem asas, páginas despedaçan-
do pela janela.
  Nas roupas, gatos afiavam as unhas, fatiavam os tecidos, fiapos.
  O cheiro solidificou-se. O farelo se misturou ao redemoinho que já era a serragem do armário.
  Um estalido correu pelos porta-retratos, ranhuras moeram as lembranças.
   No espelho ainda uma imagem contorcida.
  Em cima da escrivaninha a caixa desmontou: brincos e anéis perderam-se, contas espalhadas pelo assoalho.
  Primeiro as pegadas evaporaram dos sapatos, depois entraram as traças.
  Renegada a letra, dos cadernos escorria uma tinta grossa.
   Na parede uma pose emoldurada derreteu.
   No espelho ainda uma imagem desesperada.
   O móbile ao lado da porta continuou revoando em seus fios. Por um tempo, estrelas e corações congelaram e acabou espatifando no chão.
  Dos prêmios, das capas das revistas foram as formigas que deram conta.
   Numa mágoa em fogo, os diários crepitavam. 
  Queimaram junto bilhetes de cinema, papéis de bala, tickets de avião e as cartas.
   No espelho ainda uma imagem magra.
   Linhas escorreram das almofadas, do travesseiro.  
   Espuma tomou conta do ar.
  Implodiram: sombras e rímel, cigarros, cremes, remédios e batons. Fumaça manchando o teto.
   A cama dobrou toda em si mesma, velou-se.
   Os cabelos na escova, os pedaços de unhas foram os primeiros e os últimos a desaparecer, foi tudo no tempo de um instante.
      No espelho ainda uma imagem se arranhava.
    Teclas caíram. Os fios serpentearam por passagens impossíveis enquanto a tela saiu rodando feito dado, partes pulando pelo caminho.
     O chão absorveu a água de um copo meio vazio, o copo foi junto.
    Um boneco e um urso fugiram pela janela que ainda existia.
    Sereias chegaram numa onda, reclamaram suas seringas e partiram.
     No espelho ainda uma imagem borrada.
     As lâmpadas minguaram até a exaustão.
     Ali, agora, há muito ninguém pisava.
    A porta fechou sem alarde e camuflou-se no branco.
    No espelho uma imagem ferida.
   A poeira escapou pelos últimos vestígios da janela.   
     Veloz, disparatada, acompanhando o vaivém das árvores, dos varais.
    Pesaram sobre a cidade, invadiram casas antes amigas, cartórios, estúdios, registros, outdoors, grudaram em lembranças boas e más... sem distinção ressecaram todas, seguindo a mágica daquele desejo.
     No espelho uma imagem impossível,
     Um último livro fechou.
    No espelho já distante, alguém podia morrer em paz.

terça-feira, 3 de maio de 2011

A CURA


  * * *
      10/08/2003
       
     Horrível, quando o exibiam pelo hospital. Ia arrastado na maca rangente, não suportava o barulho, aqueles gemidos de metal enferrujado, podre. O sacolejo pelos corredores, sua perna e suas feridas vazando pela camisola e pelo lençol áspero, jogado para poupar quem o olhasse.
      Isso, é claro, era a pior parte, as caras arregaladas dos passantes ou pacientes ou enfermeiros ou faxineiras, o que importa? Sempre tinham alguma cara para lhe dar, e era sempre insuportável. Em todos os seus tipos, as de pena, as de nojo, as de falsa indiferença, as de simpatia e de solidariedade, só lhe alegrava um pouco as de medo.    
     Não, não era realmente uma alegria, era mais uma crueldade. Olhava firme o assustado e pensava com esse prazer contido: é isso, é assim mesmo que vai ser.
      Depois, era o exame, o que nunca é bom, a volta pelos mesmos corredores, os tropeços das rodinhas, o elevador, a multidão da visita e tudo para o quarto abafado.
      Seu nome era João Miraldo Ferreira dos Santos, sempre fora o João Miraldo, mas ali era apenas “seu” João, não importava quantas vezes corrigisse “é João Miraldo” as enfermeiras tinham-no rebatizado.
      Passava o dia engolindo aquele intimismo forçado. Na maioria das vezes, vinha da cama da direita, uma senhora gorda, dona Elenice, que se sentia um tanto entediada, só com seu tricô, e um pouco carente, só com suas doenças, insistia em chamar-lhe a atenção. Às respostas curtas e secas não desanimava, cinquenta anos de casamento tornaram-na imune. Falava das enfermeiras, do filho, das pernas, das enfermeiras, das varizes, do filho, das pernas, falava...
      O outro companheiro de quarto, o da esquerda, também lhe causava profundos desgostos: primeiro, seu mal era pulmonar, o que significava que João Miraldo agora passava os dias entre escarros, acessos de tosse e chiados; segundo: o homem era banguela, não tinha os dois dentes da frente, isso João Miraldo sabia, pois toda vez que tentava se distrair com a janela, aquele homem infeliz lhe abria um sorriso capenga que estragava toda a vista. Uma vergonha, suspirava, ele era muito mais velho do que o banguela e tinha os dentes em ordem, aquilo era relaxo, isso é o que era.
      Nos horários de visita, o quarto se enchia com os parentes da Dona Elenice, o filho, realmente, nunca apareceu, mas em compensação a nora trazia um bando de crianças, todas muito mal educadas.
      A visita da esquerda lhe era bem mais tolerável, apenas uma senhora, com ar humilde e silenciosa. Devia bater de idade com o marido, e tinha cabelos muito brancos que contrastavam com sua pele escura. Mas, para a aprovação de João Miraldo, levava uma boca completa, como tinha que ser.
      No fim do dia Arlete entrava, a faxineira lhe era um desagrado maior do que Dona Elenice com todos os netos melequentos. Não tinha a menor consideração com os ocupantes do quarto, era malcriada, nem lhes olhava na cara e fingia que não escutava enquanto João Miraldo falava. Uma menina nova, mas já trazia as unhas como garras, pintadas, cada dia com uma cor, uma mais descabida do que a outra. Além disso, ia desafinando uma canção barata enquanto arrastava as macas, sem o menor cuidado, e respondia com desdém às queixas doloridas dos pacientes.
      Fazia tempo que João Miraldo estava ali, já tinha tido muitos companheiros de quarto, todos, de um jeito ou de outro, acabavam indo, mas ele ainda ficava. O Dr. fazia piada da duração da sua estadia, mas ele sabia que, com seu sapato lustroso, o homem estava impressionado por ele ter durado mais uma semana; triste esse tempo quando você surpreende por ainda estar vivo.
      Seu mal era tanta coisa junta que velhice respondia melhor. Chegou a perguntar quanto tempo ainda lhe restava, num rompante de sentimentalismo pouco seu. A resposta: “Nunca se sabe, mas ninguém é eterno, não é seu João?”. Os sapatos brilhosos saíram martelando o chão, como quem não acredita muito nessas coisas. João Miraldo encarou a pressa daqueles passos tomado por qualquer coisa entre a humilhação e o ódio e não era a inveja disfarçada do despeito, era muito mais do que isso.
      Em todo caso, não gastava muito tempo pensando, piorava seu estado, só que seus dias eram tão ralos que o passado vinha, como para lhe dar alguma grossura. Então: Era João Miraldo Ferreira dos Santos, filho de Olassir Oliveira dos Santos e Tereza Ferreira; Era o João Miraldo da rua do Treze, amigo do Otávio e do Waldir; Era o João Miraldo coroinha da paróquia do Padre Siqueira; Era o João Miraldo namorado da Olívia; Era João Miraldo torneiro mecânico; Era João Miraldo marido da Olívia e pai dos meninos; Era João Miraldo funcionário do mês; Era João Miraldo, homem da Rosa; Era João Miraldo “Aqui, seu João, seus comprimidos”.

* * *
      14/09/2003

     Não era bom quando o levavam do quarto, pudera que não o fizessem. Tinha dias em que o cansaço era tanto que vencia sua ranhetice, um desânimo tão profundo que nem para reclamações tinha fôlego, ficava parado, só a televisãozinha da Dona Elenice, com a boca quase aberta, os olhos ardendo por falta de pálpebra, porque até nisso economizava.
      Fora do quarto era tudo muito. Um zunido insistente que ficava lhe exigindo. Era um balanço na maca, era uma friagem a lhe marcar que havia espera. Era uma queda na mesa gelada, um ronronar seco de máquina a lhe lembrar que tinha corpo.
      Um falatório oco de médicos, umas perguntas duras que vincavam, de novo, as doenças no seu rosto de gelatina. Suspirava então, e queria a moleza da tela.
     Recebeu sacolejando as lâmpadas compridas, uma, outra, piscaram seus olhos; a parede, uma mulher, outra, um choro, um gemido. Foi então que aconteceu: uma maca, outro doente, o rosto tão perto que sentiu seu hálito novo, seu sopro de pêssego bichado, foi então.
      Já estava no quarto e ainda estremecia, o corpo de velho engastado, as juntas ressecadas pela secura de todos os dias, movia-se. Os dedos, os olhos, o peito derrubando barro àquela brisa que lhe animava.
      Como se despido de todo pelo e toda pele, pulsava, e foi tudo como dele. Olhou pela janela e foi quente e foi dourado; um sorriso aberto, desdentado e respirou no peito preto, virou e carregou um peito farto. A porta abriu, teve as unhas vermelhas, cantarolou uma mágoa bastarda.
      O médico veio, experimentou sapatos espelhados e se ergueu em ombros largos, firmes, ombro escudo, ombro muralha.
Provou qualquer coisa descabida, uma palavra agridoce, escorrendo invisível pelas ranhuras daquele muro. Com o esteto pesando no pescoço, ela parecia tão fora de lugar, a estranhou no peito estufado, mas quando foi sol e preto e gorda e moça e foi então, enfim foi,
      Sorriu, era pena.