quarta-feira, 16 de março de 2011

MOTO PERPÉTUO


MOTO PERPÉTUO

Os que buscam o moto perpétuo estão buscando
obter alguma coisa a partir de nada”
Isaac Newton

      Agora Titinho está no quintal, a cadeira escorada à parede caiada da casa, está olhando o neto aprontando pelo terreno... Bate uma brisa boa, olha de soslaio à mulher, sua velha lidando longe com a roupa.
      Os caminhos de uma ideia são coisa estranha e misteriosa. Vá-se lá saber por quais cabeças ela foi se alojando até chegar a de Titinho. Milênios, sua jornada, e dois Oceanos... Assusta pensar nas tormentas que há de ter causado!
     Foi um conhecido que lhes apresentou, Titinho soube pouco de suas origens. À grandeza do projeto os olhos do moço brilharam e a sua mocidade olhou manhosa às dificuldades da empreitada. Que muitos gastaram a vida tentando construí-la não o amedrontava, ora, se não havia uma máquina que ele não desse jeito: de motor de trator à máquina de engenho.
      Os dois moços foram se chegando, arrumaram um barracão abandonado, foram juntando tudo que é peça e, começaram. Em pouco tempo já eram mais que amigos, eram mais chegados do que um pai e uma mãe do mesmo filho. Primeiro trabalhavam nas folgas, depois alternados, um de dia e outro de noite, no fim, era só a máquina.
      Isso logo trouxe problemas, a mulher de Titinho sentiu a perda, coisa mais dura descobrir no outro alguém mais presente do que a gente. Só não sabia quem era, porque aquela estória furada de debandar para a cidade vizinha toda noite, cansado do serviço, por causa de uma máquina, isso ela não era boba de acreditar.
     A pobre caiu na besteira de tratar descaso com descaso e quanto menos procurava o marido mais o perdia. É claro que isso não se deu de repente, essas ideias são tinhosas, vão se fazendo presente aos poucos, conquistando os espaços... No começo ocupava só uma bancada do barracão, mas foi-se crescendo, e crescendo até que o infeliz estava todo empossado.
      Demorou anos para que Titinho se perdesse por completo, então, não tinha outro pensamento que não fosse para a máquina, a engrenagem central, a fornilha... Tudo que se pode imaginar ele imaginou, disso tinha certeza, não sabia mais como parar o negócio. Na verdade nem cogitava, mas se quisesse, não saberia como. Ia se indo, sem jeito nem molde, como quem vai puxado a carroça.
      Teve o tempo que o amigo abandonou a empreitada, numa estória que não é essa, sumiu no mundo desacredito de tudo, de si mesmo, da verdade, virou místico e acabou pastor. Mas Titinho
foi-se vertendo em eixos, em mola, pistão... O barracão ficava tão quente que graxa já lhe escorria pelo corpo... Continuava, abraçava pequenos acertos como se fossem grandes vitórias e seguia consumindo fracassos com um apetite desesperado. No fim, deu-se por completo, nem lembrança, nem casa tinha mais. Em tudo já se assemelhava a uma febre.
      A mulher cansou, desejou logo descobrir tudo, afinal, sempre chega o tempo em que a desgraça é preferível à espera. Tomou o ônibus e foi, muito reta, apertando forte a bolsa até a entrada do canavial. Levou só dois segundos para decidir a descer; nem se aprontou já avistou o barracão. Com o lábio tremendo abriu o portão. Escutou seca o barulho pesado, mole, aquela coisa toda se erguendo diante dela. Só aí entendeu, por entre todo vapor, e sofreu por seu engano.
      Foi passando os olhos, devagar... As partes ela conhecia, mas, de qualquer jeito, o todo era uma estranheza só, que lhe disparava o peito, lhe tremia os ombros. Agarrou-se mais à bolsa quando a voz lhe chegou, veio rouca, quase emperrada. Achou que lhe ia expulsar dali, mas depois, mudou, começou a se explicar, o funcionamento, engatou num ritmo rápido: falava, mostrava, levantava os eixos, girava as alavancas e nunca parava. Num susto recomeçava e lhe dizia de novo e levantava os braços e corria à fornalha, de lado para o outro, sua figura estranha virando vulto com a fumaça.
      De tanto que ela entendeu, e entendeu tão bem que sofreu foi uma mágoa terrível, correu para máquina, gritou-lhe nos olhos:
      - Não gasta nada para funcionar, não precisa de nada? Como que não, homem?! Se gasta toda ela mesma, não vê que assim se acaba logo? 
      E parece que disse foi a coisa certa, porque o borborinho foi diminuindo, o homem foi saindo da máquina, foi largando o eixo, afastando as roldanas. Ela podia até sorrir, pegou o rosto, com um lenço, espalhou um pouco as manchas.
      Ele saiu, fechou o barracão para nunca mais, mas foi sem ânimo nem brio, foi é movido por uma fraqueza do diabo que, parecia, ocupou o lugar da ideia exorcizada. No ônibus, a mulher olhou cheia de preocupação o seu homem todo quebrado, depois lhe ajeitou confiante e um pouco animada a gola desgrenhada; sorriu.
      Na casa nunca mais se falou naquilo, nem pros filhos que cresceram, nem pros netos que vieram. Até de profissão ele mudou, que para tentação era melhor não dar espaço.
       Agora Titinho está no quintal, a cadeira escorada à parede caiada da casa, está olhando o neto aprontando pelo terreno... Bate uma brisa boa, olha de soslaio à mulher, sua velha lidando longe com a roupa.
      Empresta um sorriso do menino e levanta de leve a barra da calça. Bem ali, logo abaixo do tornozelo esquerdo, admira radiante uma manchinha preta... Podia ser de velhice, podia ser de nascença.


segunda-feira, 14 de março de 2011

CHIQUINHA



Chiquinha, era como se chamava, tinha pernas curtas, rechonchudas. Quando nos conhecemos já não era mais criança e tudo que fazia corria solto, eu que sempre pensava em tudo me espantava: coisa estranha, andar sem saber para onde se ia...
Chiquinha morreu. Morreu queimada ou asfixiada, morreu dormindo ou desmaiada. Espero que sim, que não tenha, ainda em sonhos estranhos, aberto seus olhinhos miúdos e visto a labareda na tomada. Espero que não tenha tossido o plástico, o fio, a madeira e a cortina. Espero que não tenha tido tempo para o susto, antes da fumaça afundá-la no escuro, sem escapatória.
Espero, mais ainda, que não tenha visto a cama em chamas, o cabelo encrespando, a carne estalando e a pele derretendo. Mas, mais que tudo, espero que não tenha percebido, sequer previsto, nem por um instante imaginado, os ossos retorcidos que encontrei em nosso quarto.

CHIQUINHA



  Chiquinha, era como se chamava, tinha pernas curtas, rechonchudas. Quando nos conhecemos já não era mais criança e tudo que fazia corria solto, eu que sempre pensava em tudo me espantava: coisa estranha, andar sem saber para onde se ia...
  Chiquinha morreu. Morreu queimada ou asfixiada, morreu dormindo ou desmaiada. Espero que sim, que não tenha, ainda em sonhos estranhos, aberto seus olhinhos miúdos e visto a labareda na tomada. Espero que não tenha tossido o plástico, o fio, a madeira e a cortina. Espero que não tenha tido tempo para o susto, antes da fumaça afundá-la no escuro, sem escapatória.
   Espero, mais ainda, que não tenha visto a cama em chamas, o cabelo encrespando, a carne estalando e a pele derretendo. Mas, mais que tudo, espero que não tenha percebido, sequer previsto, nem por um instante imaginado, os ossos retorcidos que encontrei em nosso quarto.

quarta-feira, 2 de março de 2011

REENCONTRO



Ah... Você veio enfim! Há muito que lhe espero, senhora, desde o nosso último encontro!
Reconheci-lhe pelo cheiro... que flores costumavam ser essas? Mas entre, por favor, apareça à luz. Não? Está certo então, fique à vontade... Incomoda-lhe o rádio? Eu há muito já não passo sem um barulho...
Confesso que estou curiosa, como isso funciona sem o sangue à vista, o carro destruído?
Não é muito de conversa não é mesmo? Bom. Nem eu esperava que fosse, mas antes de continuarmos faria a gentileza de uma resposta? Não! Não fique tão cabreira, veja meu sorriso, não vou incomodá-la com as perguntas usuais que, imagino, a senhora escuta nessa hora, muito menos com lamentos!
É uma perguntinha de nada...
Gostaria de saber o porquê da demora, ou, exatamente, o porquê de ter me deixado, só a mim? Todos os outros se foram com a sua amabilíssima companhia!
Admito que não entendi.
Não se lembra? Hoje, justamente hoje, faz trinta anos! Pensei que esse era o motivo da sua chegada. Mas me desculpe, a senhora é, certo, muito ocupada...
Deixe-me ajudá-la então, para mim não é algo a ser relembrado! E como poderia ser? Nunca fui capaz de esquecê-lo.
Naquele dia o rádio estava alto, cantávamos, meus cabelos voavam às janelas abertas. Batia no meu rosto, só que o vento era um afago no calor do dia. Sorria pelos risos do banco de trás, mas a minha alegria vinha dos campos que se estendiam acompanhando à estrada e do sorriso que ele me devotava. O sol, a paisagem a perder de vista, o vento, lhe eram uma moldura admirável...
Ouvi o caminhão se aproximando. Minhas mãos pararam em seus cabelos quando vi o espanto e o medo invadindo seu rosto, não tive tempo de virar para entender o seu motivo, ele já estava em cima de mim.
O que se passou depois a senhora certamente sabe melhor do que eu, só acordei seis dias depois no hospital. Muitos, no começo, quando ainda se atinham a isso, gostavam de lembrar o meu estado então, diziam que eu estava mais morta do que viva... Como que para parabenizar-me pela recuperação. Ah! Como eu os odiava!
É preciso estar muito viva para sentir o que eu sentia!
A senhora já esteve, algum dia, viva? Era preciso que estivesse para me entender realmente, é uma pena, realmente uma pena que, logo a senhora, não saiba o que é isso. Para nós, é claro!
Se soubesse, se ao menos imaginasse...
Eu, por exemplo, não estaria aqui! Nunca teria ficado, presa a essa cadeira e a essa cama! Dependente de quem eu só podia odiar! Por que só de você podia vir o meu consolo! E tantos tentaram, e quanto mais e com mais afinco o faziam, mais eu os desprezava! Eles sofreram também.
É por isso que adio por uns momentos o final deste nosso encontro, pelo qual eu tanto esperei. Quero saber o porquê, bruxa! Se tinha que levá-los, se tinha que levá-lo, então porque não a mim?
Por trinta anos eu lhe procurei, por trinta anos a sua presença foi a única que me seria suportável! Por trinta anos eu me afoguei em fogo enquanto outros me sorriam e me lavavam! E eu implorei!
Não se lembra?! Não me dizes nada?
A senhora nunca demonstrou muita complacência, talvez também, essa seja uma prerrogativa dos vivos. Pois bem, não me encontra mais curada do que quando me deixou, ao inferno às suas razões!
Vamos, faça, me leve logo! É assim que me quer, arrastada às suas vestes? Que seja, é a única coisa que posso fazer.
Anda, bruxa, já cumpri minha pena, e ela foi muito longa, leve-me de uma vez dessa prisão! Pouco me interessa o rosto debaixo desta sombra!
Não ria desgraçada, não me assustará! Liberta-me ou juro, passará a sua eternidade miserável comigo agarrada, como agora, em seu peito...
Quieta. Escute bem, velha, este sussurro, é uma lição que lhe dou ao pé do ouvido: Não concebo asas. Não levo além. Aonde queres ir?! Sois tronco à correnteza, a meu toque criam raízes e, emaranhados à terra, já não passam...
E isto fizeste sem mim... Por isso deixe-me, nada tenho a fazer aqui.
– O que diz? Não, por favor senhora, perdoa minha insubordinação! Há muito o ressentimento amargura tudo que sai de minha boca! Leve-me, leve-me com você! Eu imploro, dê fim a esta agonia, esperei tanto para revê-los, livrar-me deste corpo estragado! Leve-me ao encontro deles!
Solta-me velha! Espanta-me seu hálito ainda quente.