segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Caro C.,



    A minha casa não foi tomada. Se corri pelos cômodos, trancando portas, batendo janelas foi para não ver a pintura que escorria, ou os retratos em voo curto, indo-se os pregos que os sustentavam. Nem as paredes secas vertidas em chão de estiagem. Trincas rebentando, subindo ao forro, descendo ao piso; azulejos estourando, nuvem de cacos.
    Se corri pelos cômodos, trancando portas, batendo janelas, foi para não respirar os tijolos, agora terra vermelha, ou cair junto aos pilares, esses montes de pedra, nem ouvir ao longe as telhas rebentando. E não, foi para não tomar essa chuva que fez de tudo lama.
    Corri por não corredores, por não quartos, por não salas. Não cruzei o batente de entrada: já não havia, nem para a última vez. Alinhei-me aos escombros em uma espera de não querer e fitei o poente desse espaço aberto às sombras.
    Não, minha casa não foi tomada. Temo agora invasores ou fantasmas?

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

PESCADOR DE ESTRELAS.




Vivia quase na escuridão, a noite olhava sonhador para as luzes lá no céu, estrelas pensou. Como seria bom alcançá-las. Só que sozinho não chegava, mesmo se esticando, equilibrando na ponta do pé e sua estrada continuava apagada. Um dia descobriu a rede, um presente, uma dessas bem firme e forte lhe podia trazer as luzes que precisava.
O homem passou a vida a construindo e muitas noites foram iluminadas e bem longe foi em seu caminho. Mas seu ofício não era fácil, a rede era tão fina, tão suave que precisava sempre de conserto. O homem já não era mais menino, tinha as costas curvadas de tanto se debruçar sobre ela, gastava o dia inteiro a arrumá-la, só pra a noite ter um pouco de luz, da estrada agora, quase nada.
Um dia foi pior que os outros, as mãos doíam e, logo ali, perto da sua choupana 
avistou um velho, os cabelos cinzas, o peito fraco, ainda cerzindo, o seu tempo quase esgotado, todo ele quase esgotado, e ainda cerzindo...
No homem, que já levava fins brancos na barba, foi dando assim um desespero; ora, ele também acabaria e seria só aquele desatar de nós, aquele consertar buracos? Teve então uma ideia que foi tomando conta: por que não guardar, tomar a luz num pote?
Era isso do que precisava para manter a luz segura, ali perto da sua mão, para usar quando bem entendesse, na hora em que precisasse. Mas um tal pote era coisa difícil de ser fabricada, tentou mil e uma artimanhas, ficava dia e noite pensando nisso. E a rede? Essa dava agora muito mais trabalho era um peso enorme: "Com essa rede a toda hora querendo minha atenção, não vou conseguir nunca construir meus potes."
As cordas eram sempre muitas, cinco principais, cada qual ao seu modo, tensionando ora para um lado ora para outro, se emaranhando, sempre pedindo cuidado. E a rede que já tinha uns buracos grandes, mais desfios do que fios, trazia cada vez menos luz.
O problema ainda continuava: uma ou outra estrela ficou ofendida, magoada: “pois então nosso encontro é agora um mal?!” Algumas tentaram agradá-lo, preparavam enormes, lindas bolas de luz, mas sua rede passava tão depressa, assim só por passar, com tantos furos e tão grandes que nela nem sinal ficava dos carinhos que a estrela quisera lhe dar. Já outras, que tem um jeito também outro, viraram de lado e fingiam que a rede era aquilo mesmo, se o homem se descuidava era porque queria. Davam que não ligavam mas era falsa a sua antipatia.
A busca durava, persistia. O homem todo agonia a tropeçar na escuridão que se avolumava.
Queria porque queria outra solução, a rede era um fardo, toda esfarrapada quase luz nenhuma lhe trazia. Queria jogá-la fora, encontrar logo um pote bem firme e prender para sempre de uma vez uma estrela todinha!
Ah, como ela seria linda, irradiando calor e energia sem lhe dar trabalho nenhum! E ele como seria livre, sempre passeando, sem os fios da rede a se enrolar em seu calcanhar, nos seus punhos, às vezes até em seu peito, um chegou quase ao pescoço. A solução, a única: abandoná-la.
Mas olha o que ele não se lembrava: as redes se constroem de muitos modos, ele também a podia levar nos seus rumos novos. Ela bem que iria servir: um manto na caminhada, um abrigo na estrada.
Mas olha o que ele não se lembrava: as estrelas no céu eram de mentira, faltou-lhe um telescópio bem bom desses que enxergam por trás das ilusões e das armadilhas. Se a noite o céu brilha é do encontro das muitas redes, dos muitos pescadores, do choque é que sai os feixes que iluminam os horizontes.
Agora do homem eu não sei, pouca gente sabe. A sua casa vive apagada, janelas trancadas, portas fechadas para guardar os segredos de seus potes.
Bem que queria lhe devolver aquele telescópio de cinco lentes que ele um dia me ensinou a usar.